A INSOLVÊNCIA DA DIELMAR

1- Coincidindo no mesmo período, ocorreram pedidos de insolvência de duas grandes empresas do setor têxtil: Coelima e Dielmar. Apesar de inseridas em segmentos diferentes, têxtil lar e vestuário, as duas empresas tinham um peso social elevado; marcas com notoriedade; intensivas em mão de obra qualificada. Contudo, as reações públicas em relação à insolvência da segunda atingiram proporções que decorridas três semanas após o pedido de insolvência continua-se sem perceber as razões de tal virulência.

2- O volume de negócios das empresas portuguesas em 2020 irá ter um decréscimo que se estima entre 7,5 a 10%, segundo a D&BB. Na crise anterior caiu 5,6% e levou 5 anos a voltar ao volume de negócios anterior. As medidas do governo continuam a ter efeitos positivos na contenção das insolvências e no encerramento de empresas. Por isso, continua a ser muito difícil avaliar a dimensão da destruição da capacidade produtiva e os seus efeitos no crescimento.
O setor têxtil faturava 7,5 mil milhões de euros antes da pandemia e 5,3 mil milhões destinava-se à exportação, evidenciando desta forma a sua importância na economia nacional. Mas enquanto as exportações do segmento têxtil lar cresceram 25% nos primeiros 5 meses de 2021, o segmento do vestuário baixou 28%. Convém relembrar que 85% da roupa consumida vem da Ásia, e o impacto da pandemia no consumo teve efeitos neste segmento que não pode ser obliterado, independentemente da estratégia e do modelo de negócio que as empresas do setor adotaram. Este subsetor do têxtil é por isso muito sensível aos ciclos recessivos e muitas empresas chegaram a esta crise pandémica muito fragilizadas pela crise de 2008/2014.
A gestão de empresas da indústria transformadora, de dimensão média/grande, de mão de obra intensiva, inseridas em mercados competitivos, sofrendo concorrência de mercados asiáticos, debilitadas financeiramente pela ocorrência de ciclos económicos recessivos muito próximos, com dificuldades de recrutamento de quadros técnicos devido à sua localização no interior, até recentemente sem acesso a sistemas de incentivos à modernização tecnológica devido à sua dimensão, sofrendo o impacto anual de crescimento de custos salariais impostos politicamente, não é uma equação fácil.
Independentemente do juízo que se faça sobre estes setores, todos concordamos que é muito redutor centrar na qualidade de gestão a razão principal do colapso deste tipo de empresas.

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3- Uma associação empresarial tem dificuldades em adotar e defender a visão “schumpeteriana” da destruição criativa, resultante dos choques de seleção associados aos ciclos recessivos. Entre 2008 e 2014 cessaram a atividade mais de 100 mil sociedades comerciais que entregaram IES. Não conseguimos estimar o que ocorrerá no rescaldo desta crise. Mas tanto há 10 anos como agora, uma coisa é a dinâmica na criação/mortalidade de micro e pequenas empresas, outra são as consequências do encerramento de grandes empresas de bens transacionáveis do setor industrial. Ninguém pode ficar indiferente quando se vê desaparecer empresas com dimensão, marca, notoriedade e produto de qualidade.

4- A insolvência da Dielmar e as reações públicas que provocou obriga-nos a fazer algumas reflexões.
A primeira diz respeito ao ambiente de negócios em Portugal e à forma como se encara a atividade empresarial. O sucesso e o colapso são as duas faces dos projetos empresariais. O primeiro é, infelizmente, malquisto na sociedade portuguesa; o segundo, dá azo a fortes e violentas críticas, assemelhando-se a uma catarse coletiva de posições ideológicas dificilmente contidas. 

A segunda refere-se à função social do empresário. Dignificou-se nos últimos anos da década 80 do século passado, consolidou a notoriedade nas décadas seguintes, mas por um conjunto de razões é apenas tolerado por largos estratos da sociedade portuguesa. E quando os projetos empresariais colapsam, o empresário passa a ser proscrito e ostracizado. Veja-se o caso de Ana Paula Rafael. Há 10 anos condecorada com a ordem de mérito empresarial, classe de mérito industrial, fortemente elogiada na imprensa económica e pela classe política. Num ápice passou a concentrar todas as responsabilidades e causas do insucesso do projeto. São nestes momentos que o empresário reconhece a solidão e o isolamento da sua função social. Não há rede, amigos, associações empresariais, clientes, fornecedores, trabalhadores, que estejam disponíveis para quebrar a condenação pública.

A terceira é sobre a estratégia e modelo de negócio. Quando as empresas de confeção e vestuário foram fortemente atingidas na crise de 2008/2014, nomeadamente no Vale do Ave, atribuiu-se responsabilidade à excessiva dependência de um ou dois clientes e de não terem apostado na marca.
O caminho da Dielmar foi outro. Investiu na marca, na confeção de alta qualidade; posicionou-se no segmento médio-alto e no nicho de vestuário mais formal; criou a alfaiataria masculina e feminina por medida; lançou-se na exportação. Há 20 anos não havia nenhum consultor que não defendesse que esta era a estratégia a seguir neste setor industrial. Ao analisarmos o que se disse e escreveu nestas últimas semanas, até por pessoas que nunca na vida passaram um cheque, afinal o caminho não era esse mas sim o outro: não se “deve competir num mercado povoado por marcas de escala internacional quando não se tem uma escala além fronteiras”; “o mercado nacional é exíguo e não se pode competir com essas marcas nas mesmas ruas e com preços mais caros”; devia-se “concentrar a produção em 1 ou 2 clientes, deixando apenas 10% para as lojas de marca”; devia-se “reinventar e apostar nas vendas online”, etc. Outros constatam que as empresas do setor que melhor estão a responder aos efeitos da crise pandémica, não são as que apostaram em marca própria, mas sim na produção para as grandes marcas internacionais e que dedicam a maioria da sua produção ao segmento feminino. Que a insolvência da Dielmar sirva para se fazer uma reflexão sobre o modelo de negócio e a estratégia comercial a adotar nos setores industriais tradicionais da economia portuguesa.

A quarta tem a ver com o dimensionamento das empresas. As empresas com mais de 250 trabalhadores têm estado nos anteriores QCA sem acesso aos sistemas de incentivos à modernização e renovação tecnológica. Se a competitividade via custo não assegura a viabilidade futura deste tipo de empresas, e se a modernização tecnológica não pode ser apoiada, só um grande esforço e capacidade de gestão consegue manter estas empresas em atividade. A defesa que se faz do redimensionamento empresarial tem de ser acompanhada por uma política económica e pública que atenda às necessidades e características deste perfil de empresas. Esta é outra lição a retirar da insolvência da Dielmar.

A quinta, e última reflexão, está relacionada com a operacionalização dos instrumentos de capitalização das empresas. A Dielmar não teve acesso a sistemas de incentivos à modernização tecnológica, mas recorreu aos instrumentos de capitalização que a política pública disponibilizava. Primeiro ao FACCE (fundo de apoio à concentração e consolidação empresarial), instrumento criado para apoiar a atividade económica e o emprego, que tomou 30% do capital social e direitos acionistas especiais consagrados num acordo para-social; depois ao FIEAE (fundo imobiliário especial de apoio às empresas), que se destinava a sanear e a estabilizar empresas economicamente viáveis que estivessem em dificuldades. Estes instrumentos estiveram acessíveis ao tecido empresarial e diversas empresas a eles recorreram. Pensamos que as participações sociais adquiridas a empresas, por fundos públicos e/ou privados deveriam estar sujeitas e assumir o risco dos negócios e os resultados dos mesmos. Contudo, estão normalmente resguardados por cláusulas de “put option”, podendo efetuar o desinvestimento, algo que não é permitido aos outros acionistas. E convém reconhecer que executar uma “put option” em plena fase de pandemia quando a economia de um país foi paralisada por decreto, não era nem é uma decisão expectável. Também não parece razoável que estes fundos não exijam administradores nas empresas onde intervêm, de forma a ficarem responsabilizados pela gestão implementada.
Espera-se que tudo o que se passou na Dielmar neste domínio, sirva de reflexão para a conceção e regulamentação dos instrumentos de capitalização a criar no PRR e quadro financeiro plurianual.

5- Para terminar, apela-se ao esforço para se encontrar uma solução que viabilize a atividade da empresa e salvaguarde os seus ativos. O processo, todavia, tem de ser célere. É provável que haja investidores nacionais do setor que possam, mas não de forma isolada, estar interessados no negócio. Se tal acontecer, muito dificilmente se evitará a redução de pessoal e um forte apoio do estado à modernização tecnológica e fundo de maneio. 

Agosto 2021